NÓS, ENGENHEIROS, QUE DIMENSÕES NOS TOCAM E COMO PODEMOS EM MATÉRIA DE CIÊNCIA CONTRIBUIR? SOMOS, POR NATUREZA E POR FORMAÇÃO, FAZEDORES. NÃO DESTRUIDORES. FAZEDORES DE QUALQUER COISA, DESDE QUE ÚTIL PARA A SOCIEDADE, SEJA ELA UMA PONTE, UMA MÁQUINA, UM EQUIPAMENTO PARA TRATAR DOENTES, UM PAR DE SAPATOS, UMA FÁBRICA, UMA EMPRESA.
Parecerá estranho escrever sobre uma pandemia numa revista dedicada à engenharia. Temos presente que atravessamos um momento que ficará na história como um dos acontecimentos que mais nos perturbou, num período de 100 anos, a nós cidadãos e à sociedade. Só por isso mereceria um texto abordando a temática. Mas, para além dos aspectos societais e que, portanto, nos envolvem a todos, há vertentes desta pandemia que tocam aspectos próximos de conceitos da engenharia. Refiro me, por exemplo, à tentativa de os resolver a régua e esquadro, à incerteza e à probabilidade de acontecimentos, à simultaneidade de medidas e à consequente ressonância. Grandezas, métodos ou medidas que, de algum modo, têm estado associadas à pandemia e que estão, também, presentes em fenómenos de engenharia. Talvez esta possa dar alguma luz à forma como temos visto dar resposta ao combate à pandemia para, serenamente, prepararmos as próximas.
É útil recordar outros acontecimentos com a escala e alcance desta pandemia. Em termos de efeitos, as guerras mundiais e regionais com efeitos devastadores. Alguém fez notar que nos EUA por causa do covid 19 já morreram mais pessoas do que em toda a guerra do Vietname. Recordo ainda, enquanto fenómenos isolados, o terramoto de Lisboa de 1755, a gripe espanhola de 1918, o tsunami de 2004 no sudeste asiático, o terramoto do Japão em 2011, para citar alguns.
O que aprendemos com estes acidentes e acontecimentos?
De todos estes fenómenos percebemos a transcendência das consequências e o seu alargamento a domínios muito para além dos directamente envolvidos. Por exemplo, na guerra, talvez a que mais ensinamentos nos deu terá sido a I Guerra Mundial. Porquê? Porque não houve disputas ideológicas ou religiosas entre os beligerantes e, ainda assim, matou 20 milhões de pessoas. Houve, isso sim, uma disputa pela hegemonia, uma espúria causa para tanta mortandade. Qual foi o principal ensinamento desta calamidade mundial, onde pela primeira vez se usaram a aviação, a metralhadora, os gases asfixiantes e práticas hoje interditas pela Convenção de Genebra? A lição foi de que os assuntos muito graves para a sociedade, como as guerras, não podem ser deixadas exclusivamente nas mãos dos especialistas.
Os militares são imprescindíveis enquanto especialistas da arte da guerra, são profissionais, dedicados á sua bandeira e necessários para o seu desenrolar. Mas não podem determinar tudo sobre ela. A 1ª Guerra Mundial era, segundo os cronistas da época, para durar alguns meses. Durou 4 anos e, como se disse, ceifou 20 milhões de jovens europeus numa frente de batalha de mil Km de trincheiras do Mar do Norte ao Mediterrâneo. Alguns dizem uma guerra estúpida porque desprovida de estratégias claras de ambas as partes e cuja frente se movia uns quilómetros para um lado ou para outro. A guerra durou até que a sociedade percebeu que não podia tolerar a continuação daquela mortandade e decidiu parar a guerra e negociar.
Qual é o paralelo com a pandemia? Tratando -se de uma calamidade mundial o paralelo é a necessidade de se ter a consciência que a sua gravidade, alargada a outros domínios afora a saúde pública, não permite deixar que a resolução pertença apenas aos especialistas (epidemiologistas, profissionais de saúde), que são apenas uma parte da sociedade. E a sociedade também não pode ficar refém do medo. Por causa da pandemia fecharam se empresas e instituições, escolas, universidades, serviços públicos e confinaram se os cidadãos, - crianças, adultos, idosos-, em casa, por um tempo alongado, que conduziu a sofrimento, miséria e, segundo alguns, fome, desespero ou simplesmente mais mortes porque outros doentes graves deixaram de ser tratados convenientemente. Só por estas graves consequências, causadas de forma indirecta, o assunto pandemia deixou de ser um exclusivo problema de saúde pública para se projectar como um problema de grandes proporções societais. Na realidade, já percebemos que não é um problema de vidas versus economia ou empresas. É, sim, um terrível dilema de vidas (do virus) versus vidas (dos efeitos colaterais) a que acresce um grave problema económico e social. Logo, todos têm o direito/dever de tomar posição e as instituições politicas a obrigação de os ouvir e de os valorar.
Nós, engenheiros, que dimensões nos tocam e como podemos em matéria de ciência contribuir? Deixo alguns exemplos.
Desde logo o nosso ethos não se enquadra com a destruição. Seja de empregos, de empresas, de instituições ou, por razão maior, da morte de pessoas enquanto efeito colateral. Somos, por natureza e por formação, fazedores. Não destruidores. Fazedores de qualquer coisa, desde que útil para a sociedade, seja ela uma ponte, uma máquina, um equipamento para tratar doentes, um par de sapatos, uma fábrica, uma empresa.
Por isso, custa-nos sobremaneira, por muito válidas que sejam as intenções de conter a proliferação da doença e, assim, poupar vidas, assistir à auto-destruição de valor como raramente visto e, por arrastamento ou por efeito colateral, ao sofrimento e à morte de alguns.
A questão que nos interrogamos não é, necessariamente, a justificação sobre a tomada de medidas drásticas para conter o contágio, mas antes se seria possível ser menos destrutivo e mais judicioso na adopção e implementação das mesmas.
E, neste âmbito, algumas questões nos surgem.
Primeiro, a regra da “régua e esquadro”, ou seja a tentativa de tudo regulamentar em matéria de segurança sanitária até ao ínfimo pormenor, desde as creches às fábricas, dos jovens aos idosos, dos restaurantes às esplanadas, das máscaras às normas para lavar as mãos. Provavelmente não haverá profissão que melhor manuseie a régua e o esquadro para exprimir as ideias em engenharia. Mas, também sabemos os limites do uso destes instrumentos na resolução de problemas de engenharia. Ao olharmos para as medidas que vão sendo cega e genericamente tomadas fica-nos a fundada dúvida se não estaremos a usar em excesso a “régua e o esquadro” ou a sobreregulamentação. Ele são medidas de distância entre as pessoas, de saídas da residência, de idas aos supermercados, de passeios higiénicos ou com animais, de acesso às praias ou aos jardins, de abertura de umas lojas e manutenção do fecho de outras, etc. Ora, nós sabemos que não podemos modelar a sociedade a “régua e a esquadro”. Talvez a adopção de regras obrigatórias mais gerais acompanhadas por um conjunto de recomendações fosse o mais adequado, deixando ao critério dos cidadãos a sua adaptação a casos específicos ou aos detalhes.
Segundo, o determinismo e a aleatoriedade. Em essência, nós engenheiros, fomos treinados para usar conceitos cartesianos e usar variáveis determinísticas. Estas são muito mais próximas do que o comum das pessoas pretende: certeza e risco nulo. Na sociedade há uma grande intolerância pela ambiguidade, mesmo quando as variáveis são por natureza ambíguas ou aleatórias. Sabemos que a realidade é muito mais bem representada por variáveis aleatórias, pelo que também usamos conceitos probabilísticos que melhor representam a realidade que procuramos identificar ou modelar. Por exemplo, sabemos bem que zero defects é um conceito probabilístico porque o verdadeiro defeito zero não existe. É sempre um valor finito não nulo. Tal como as solicitações sobre uma estrutura. Usamos variáveis determinísticas para obter soluções, mas sabemos que, de facto, estamos em presença de variáveis aleatórias, como sejam as propriedades dos materiais ou as solicitações.
Com frequência se vêm notícias que a exposição a uma infecção do covid 19, confere imunidade. Mas logo a seguir nos complementam de que não se sabe o prazo dessa imunidade. Para que serve esta última informação senão para criar confusão e incerteza na mente dos humanos? Claro que a variável prazo de imunidade é uma variável aleatória na medida em que depende de indivíduo para indivíduo em função de factores como a resposta biológica ou outros critérios. De que serve, portanto, dar tanta ênfase na incerteza sobre o prazo de imunidade. Seria equivalente a explicar que uma estrutura foi construída com um aço com uma determinada resistência, para depois se afirmar que se deveria ter atenção porque a resistência daquele aço tanto pode ter mais 10% ou menos 10% do que o nominal. Simplesmente é informação que está implícita e que de nada serve lhe dar ênfase.
Terceiro, o fenómeno da ressonância e suas consequências. A ressonância é, como sabemos, um fenómeno físico e de engenharia em que, por sobreposição de forças repetidas e alternadas, se provocam amplitudes excessivas que podem chegar a destruir uma estrutura ou uma máquina. Somos treinados a identificar o problema, a analisá-lo e a tomar medidas de concepção ou de construção para evitar situações de ressonância. Uma delas é desfazar a aplicação das solicitações em causa. Em termos mais prosaicos e para exemplificar é, também, o caso quando um pelotão é ordenado a destroçar da marcha quando atravessa uma ponte (no caso metálica) para evitar que a frequência e a alternância do passo não se aproxime da frequência natural da estrutura. Afastamos, assim, o risco de provocar a ressonância da estrutura e a sua eventual destruição ou, pelo menos, evitarmos a sujeição a esforços elevados desnecessários.
Tudo isto vem a propósito da tomada de medidas de fecho de empresas e de confinamento em simultâneo para conter o alastramento da epidemia. O critério de aplicação universal a todo o território, de forma indiscriminada, será a forma mais correcta, quando se sabe que a incidência territorial do covid 19 é muito díspar ao longo do território, de regiões ou de aglomerados populacionais? Não estaremos a provocar a ressonância do sistema conduzindo à destruição desnecessária de muitas mais empresas e de empregos? Identicamente quanto ao stress provocado nos cidadãos?
Se há uma região onde a incidência do agente causador é muito inferior à de outras regiões, fará sentido alargar a essa região as medidas tomadas para uma região com elevados casos de infecção? Dir-se à que evita a contaminação desta região por elementos provenientes de outras ou vice-versa. Mas estaremos a valorar todas as consequências e riscos associados– a da contaminação, a da destruição, a dos efeitos colaterais?
Não sabemos, ainda, quais as consequências finais da pandemia na economia e na sociedade. O World Economic Outlook, de Abril de 2020, do Fundo Monetário Internacional prevê uma contracção do PIB mundial, este ano, de -3% (em Janeiro previa +3.3 %), de -8% em Portugal e -de 7.6 % na Europa. O desemprego está a disparar e aponta para mais de 10 % na Europa e de 14 % nos EUA.
Olha-se, por vezes, para o efeito na economia como se fosse algo associado aos patrões e aos empresários. Não será que quando uma empresa é encerrada, ainda que transitoriamente, os principais prejudicados são os trabalhadores que todos os meses vão ganhar o pão que os sustenta? Numa empresa típica, se 2 a 3% sobre as vendas constitui o lucro bruto (valor estatisticamente elevado), 20 a 40% representa os vencimentos distribuídos pelos seus trabalhadores. Quais são os mais prejudicados?
Não creio que o mundo venha a adoptar, em futuras pandemias ou mesmo numa segunda vaga, medidas como as que quase todo o mundo adoptou para combater a actual. Por vezes as consequências de medidas são bem mais gravosas que as causas que pretendem evitar. Ainda é cedo para conhecer toda a extensão e tirar conclusões. Estamos a falar de vidas. É necessário reflectir.
Ainda bem que nós, engenheiros, apreciamos estar do lado dos fazedores.
Fernando Sérgio Duarte Fonseca
Engenheiro.
Maio 2020
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