Sobretudo nos últimos séculos, a humanidade beneficiou imenso da tecnologia que criou para melhorar a sua qualidade de vida, a sua saúde, alimentação, conforto, esperança de vida! Esta foi a razão porque no mesmo período de tempo, a população humana aumentou num ritmo nunca observado na sua História.
Nos últimos tempos, o crescimento acelerou imenso. Hoje são quase oito mil milhões. Mas, manter os modelos económicos passados e presentes, tantos humanos podem tornar-se na praga mortífera para o ecossistema que os sustenta. Todavia, a tecnologia atual atingiu um patamar tal que passou a ser possível substituir os modelos tradicionais que nos trouxeram até à civilização que hoje usufruímos (Siebel, 2019).
São muitas e variadas as tecnologias que nos beneficiam, desde a agricultura à mecânica, da informação à biológica, da nanotecnologia à espacial. Todavia, existe uma tecnologia que quase sempre é esquecida, mas que está na base de todas as civilizações e da criação e desenvolvimento da maioria das tecnologias. Talvez porque os humanos mais civilizados nela viviam e sobretudo porque cada vez mais humanos nelas irão viver. São as cidades.
Estas foram uma das maiores invenções da humanidade (Wilson, 2020). A cidade é tecnologia desenvolvida pela arquitetura e as várias engenharias. Sempre conferiu a ordem e estética que uniu os povos na suas culturas e sentido de pertença. Foram os polos para a troca de ideias e de bens através da política e comércio. Têm sido os verdadeiros ninhos de civilizações e prosperidade que proporcionam maior eficiência no consumo energético per capita, mais interação humana, base do comércio, das artes e do poder.
Como espaços urbanizados, beneficiam de infraestruturas que integram redes de abastecimento, saneamento, comunicação e transporte. Só o saneamento foi a tecnologia que mais salvou vidas humanas, tornando a cidade como o principal motor para o bem-estar e progresso humano, mitigou surtos pandémicos como a cólera, quebrou a cadeia que levava à morte de tantos milhões de pessoas.
As cidades foram sempre os hubs onde se processaram os fluxos necessários à riqueza, paz ou o conhecimento. Os fluxos como a comunicação, de pessoas, bens, energia ou a água processam-se de modo mais eficiente nas cidades criando nelas máquinas de poder, comércio ou de transmissão de conhecimento. Reforçou-se a vantagem de os humanos em relação aos outros seres do ecossistema. Por exemplo, a comunicação que fundamentou o conhecimento e coesão dos grupos humanos e foi transformando a própria fisionomia e cérebro aos longo dos milénios. Como comunidade mais social da Natureza, os humanos funcionaram melhor e irão funcionar cada vez mais em rede, sendo as cidades o seu expoente de civilização.
A concentração de humanos que, em presença uns dos outros, interagem, transacionam ou servem, desenvolveu neles as maiores capacidades para inovar, criar valor, desenvolver, aprender. As maiores cidades do mundo, pelo menos no hemisfério norte, são as mais prósperas e os efetivos centros de poder económico dos seus países. Por exemplo, Londres e Paris são muito mais produtivas do que o restante Reino Unido e França (Diamandis e Kotler, 2020, p.244). A cidade tem funcionado como o principal centro de poder e transformação da natureza em riqueza, mas que nos conduziu à atual quase rotura dos frágeis equilíbrios do ecossistema dos quais todos dependemos. Também será na cidade que estará a principal resposta aos equilíbrios exigidos às sociedades que se querem sustentáveis, sobretudo para as futuras gerações.
Para acolher tantos humanos, mas em simultâneo reduzir a área que ocupam no planeta, a solução passará por os concentrar em cidades. Para evitar a Sexta Extinção no planeta, vários cientistas de topo defendem a tese do aumento da área natural protegida dos atuais 15% de superfície terrestre para cerca de 50% (Wilson, 2016).
Ao contrário do que tem acontecido nas últimas décadas, as civilizações humanas terão de dispensar para a Natureza os seus próprios espaços. A penetração do espaço urbano no que é natural, eliminando-o até, está a retirar à Natureza a sua própria capacidade de regeneração. Favorece a intromissão da vida selvagem, vírus e bactérias no espaço humano, sobretudo aquelas que são incompatíveis com os corpos humanos, gerando pandemias devastadoras.
Neste século XXI, a cidade terá de ser reinventada para concentrar ainda mais humanos em qualidade de habitat, mas também a sua própria produção alimentar, industrial e de serviços. A cidade não pode ser um centro caótico e poluidor de concentração humana. Um exemplo deste tipo a evitar é a cidade de Lagos, Nigéria que, em 2050, poderá até atingir 100 milhões de habitantes. Pelo contrário, a própria cidade terá de ser autossustentável; produzir o que a alimenta; minimizar o transporte de matéria, energia e de alimento a partir de grandes distâncias (por vezes milhares de quilómetros), situação que implicam demasiadas emissões de gases como o CO2 e outros venenos para os próprios humanos.
Para alavancar as mais elevadas capacidades do poder humano para a criação de valor, como é o Humanware (Gomes, 2018), os humanos precisam de ambientes confortáveis e na sua própria escala. As cidades são poderosos ambientes de integração e interação quando os seus espaços integram praças, ruas e edifícios na escala certa, a humana. Quando facilitam a vivência humana ao nível da rua tornando o espaço publico com mais interesse e vibração. Este espírito cooperativo e comunicativo quebra (e esmaga) quando as praças, ruas e edifícios são demasiado grandes, as suas ruas vazias de gente em movimento e ação.
Tudo piora quando se concentram os humanos em subúrbios longínquos. O acesso ao centro vibrante onde se comunica e produz não pode consumir demasiado tempo, nem combustível ou saúde (pelos altos níveis de stress). Assim se reduz a capacidade produtiva e criativa da população que deve criar riqueza no século XXI. Apenas servem as elites de economias decadentes e em estado de estagnação que ainda dependem da extração de matérias primas ou pessoas por modelos económicos obsoletos (e em Portugal?).
Os centros das cidades, sobretudo as antigas, com a sua vida própria e dimensões na escala humana, oferecem os melhores ambientes para a criação de riqueza no modelo económico emergente (Gomes, 2018). Todavia, esses ambientes requerem a preservação dos espaços urbanos e edificados tal como foram evoluindo ao longo de gerações, a quais os humanos se habituaram para se sentirem confortáveis e felizes, logo cooperantes e produtivos.
O segredo não estará na destruição das malhas urbanas, mas humanizadas, e substituição por “modernos” mamarrachos de betão e aço, com muito vidro, para alimentar os egos de alguns poucos com dinheiro. Ou, na expulsão dos humanos locais para que criar núcleos turísticos onde se finge uma certa ideia de cidade tradicional. Em ambos os casos, a cidade transforma-se numa espécie de deserto, estéril de vida e de fluxos que realmente criam riqueza, para serem uma espécie de resorts para turistas e privilegiados que podem pagar tais localizações. São modelos económicos que perdem na criação de valor que depende mais de uma rede de muitos milhares de humanos que interagem e comunicam entre si.
É preciso trazer gente para ocupar a cidade em permanência tanto em edifícios como nas ruas e praças, aqueles que dispensam o carro porque vão pé ou de metro, que compram no local e usam os serviços próximos. São estes humanos que realmente conferem vida à cidade, sobretudo os jovens e as classes médias, os verdadeiros criadores de riqueza. Esta cresce e multiplica-se através dos milhões de interações diárias, com ou sem transação comercial de bens e serviços. A criação de riqueza não tem significado quando apenas se concentra em alguns setores (como o turismo) ou em poucos agentes com mais privilégios, como se observa nos países mais pobres do mundo.
Para manter e sobressair tais ambientes urbanos com valor humano a solução mais plausível passa pela reabilitação dos espaços urbanos e edifícios, tal como existem, apenas reforçados no desempenho funcional exigidos no contexto atual. Mas, no contexto atual de alta pressão sobre o ecossistema, a reabilitação não pode aplicar os mesmos princípios dos últimos dois séculos, ou seja, apenas pelo uso de elevado consumo de matéria e energia que castigam o planeta de que dependemos. A reabilitação urbana terá de ser perfeitamente sustentável, compatível com a natureza que integra a vida, incluindo a humana.
Deverá satisfazer determinados requisitos apenas aplicados por quem tem uma inteligência superior à humana – a Natureza.
Este será o tema do próximo artigo.
Lisboa, 30 de março de 2022
João Correia Gomes (Ph.D., Mestre em construção, Engenheiro civil)
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