Para conseguir evoluir e prosperar em relação a todas as outras espécies, a humanidade foi transformando a Natureza – terreno e materiais – em edificado (cidades e imóveis) ajustado às suas próprias condições físicas, fisiológicas, psicológicas e sociais. Era crucial ter as condições mínimas para a sua sobrevivência e proteção. Modificou o ambiente natural que lhe era agressivo, hostil, e desconfortável, à sua condição para ambientes físicos envolventes aos seus corpos e atividades. Apenas com a ciência atual percebe-se que interessava a qualidade dos ambientes artificiais quanto a exigências de segurança, proteção, saúde, conforto. Todavia, durante toda a História Humana essa perceção de funções era empirica, até subconsciente, integrava na cultura de cada região com o seu clima e orografia.
Assim, quase sempre, para os comuns humanos, o edificado foi a evidência do imobiliário. Este padrão de reconhecimento do objeto imobiliário está ainda muito embutido na cultura (mentalidade) humana. Dada a óbvia evidência física tem sido fácil percecionar o edificado como objeto físico, logo em copiar para objetos semelhante, com mais ou menos técnica, mais ou menos tijolo e argamassa. A ter em conta que a qualidade é um conceito muito abrangente e relativo que varia com as diversas sociedades humanas, a maioria sem grande formação formal, nem consciência racional, aceitando sem discussão a cultura envolvente.
A construção é a atividade física ainda mais comum em todo o planeta, sendo boa parte ainda executada por trabalho prático manual, mas baixo conhecimento tecnológico. Assim, com maior ou menor esforço, mesmo que apenas muscular, globalmente se constroem imóveis de qualquer modo. Mais raras são as intervenções racionalizadas, mais baseadas na inteligência, com a ciência, a matemática ou o planeamento.
Mesmo ainda hoje, para a maioria dos humanos, o edificado apenas tem de satisfazer requisitos para a sua sobrevivência relativos à fisiologia (abrigo) e segurança (níveis basais da pirâmide conforme Maslow).
Nas sociedades avançadas, o processo de concepção e execução do edificado físico tem a responsabilidade de grupos profissionais certificados e organizados – como o grupo AEC (Arquitetura, Engenharia e Construção). Inclui-se a indústria de materiais e componentes.
O seu foco está em obter ambientes físicos para satisfazer exigências funcionais pelo uso racional e eficiente do trabalho, energia e matéria, com ciência, matemática e tecnologia.
Resultam em infraestruturas enterradas ou não, paredes, pavimentos, redes que, combinadas e no seu todo, conferem propriedades ajustadas de segurança, conforto e saúde. Para lá da construção tradicional, a abordagem tende a seguir a teoria dos sistemas. O material deixa de ser o fim da construção e passa a ser um meio para o edificado.
Todavia, a abordagem AEC não chega. O moderno produto imobiliário é ainda mais abrangente do que simples configuração do ambiente construído. O empreendimento imobiliário é um processo complexo para otimizar, validar, viabilizar, sustentar, sujeito a vários critérios, sendo que a maioria nem é de ordem material, mas racional e institucional.
O processo imobiliário é multidimensional porque os utentes (humanos e outros) e os seus empreendimentos não estão sujeitos apenas ao ambiente físico. Dependem de ambientes humanos, institucionais e informacionais (ver o último artigo). Estes são ambientes básicos que geram outras envolventes que, por sua vez, estimulam ou afastam interesses e ações para o progresso, como sejam os ambientes sociais, políticos e económicos.
No contexto da atual sociedade de mercado avançada e competitiva, que se quer próspera e sustentável, este tema de configuração de ambientes apropriados tem importância. E o setor imobiliário é talvez o agente protagonista porque configura os ambientes onde atuam os humanos e é profundamente afetado pelos mesmos.
Neste desafio, o promotor imobiliário deve adquirir importância relevante, pois como líder do processo de empreendimento imobiliário deve ser mais esclarecido, ter uma visão mais holística, agir de modo mais racional, ter uma perspetiva de gestor de projeto, mas menos de construtor como era no passado (e ainda se mantém muito esse paradigma). A sua função passa por aplicar com eficiência os recursos e condições disponibilizadas pela envolvente (não apenas a física) para assim prover um produto eficaz que integre o bem imóvel com serviços de suporte ao cliente. Neste caso, a satisfação do cliente não abrange apenas meros desempenhos físicos, mas de ordem emotiva, psicológica, sociológica, económica, de autossatisfação (conforme o segmento projetado no conceito imobiliário).
Até agora o padrão de negócio (salvo as honrosas exceções) da produção imobiliária tem-se interessado nas atividades de compra do terreno, da execução da obra e na venda. Trata-se do processo tradicional de desenvolvimento imobiliário. Enfoca mais no binómio fazer para vender do que no processo pensar para fazer e depois explorar. A atividade tradicional dá valor ao esforço empírico da obra tangível, porque é fácil de percecionar. Enfim, diga-se que elege o operário manual (como o pedreiro) como figura central do negócio. Tende a ignorar as atividades racionais (planeamento, projeto, contratação) que são mal pagas e descura a pressão sobre os processos institucionais (licenciamento, fiscalidade, legislação).
O sucesso deste modelo tradicional foi importante, ainda em todo o século XX, quando as obras portuguesas utilizavam abundante mão-de-obra barata e experiente. Mas, depois da quase implosão do setor da construção entre 2010 e 2015, o modelo deixou de ser viável para a sociedade portuguesa, porque não existem recursos humanos baratos e disponíveis.
Um bom sintoma desta realidade pode verificar-se pelo salário mensal efetivo de pedreiro na área metropolitana de Lisboa atingir 2000 a 2500 euros, enquanto o salário médio do engenheiro civil é 1.250 € (fonte: Randstad). Portanto, é uma situação paradoxal que não incentiva o sacrifício de aquisição de conhecimento técnico e criação.
Infelizmente, este é ainda o modelo económico corrente no país, que se mantém pobre nos processos de criação de riqueza. Apesar de honrosas exceções este é ainda o padrão de produção que não consegue satisfazer os requisitos atuais da sociedade.
O foco apenas no hardware com carência no esforço quanto ao software e humanware significa apenas fraca eficiência e baixa produtividade nacional (Gonçalo Saraiva Matias) nos negócios (e não apenas no imobiliário). Neste mundo competitivo de alta tecnologia e elevado conhecimento técnico perdem-se as valências que criam efetivo valor, em que o material deve perder peso no computo do valor do produto (bem ou serviço).
Se a sociedade precisa de habitação acessível, e não é apenas no preço/renda, mas também a facilidade nas interligações geográficas (porque a habitação no interior do país até é barata, mas é longe dos centros de criação de riqueza, logo não interessa), este modelo tradicional já não consegue responder.
Suponha-se o exemplo de jovem solteiro na área metropolitana de Lisboa com salário médio de 1.041 € que pretende comprar casa nova, digamos um T1 com área bruta total de 60 m². Para se considerar acessível, a sua taxa de esforço não pode ultrapassar 35%, logo o serviço de divida não pode ser superior a 425 € mensal.
Suponha-se que solicita um empréstimo por 30 anos com uma taxa de juro de 4%. Então, o valor de aquisição do apartamento não pode ser superior a 1.500 €/m² de área bruta para cumprir os requisitos acima mencionados.
Acontece que a produção de habitação corrente na região da Área Metropolitana de Lisboa não consegue o custo de construção unitário inferior a 1.800 €/m² de área bruta. Este inclui o IVA de 23%, e exclui os custos de terreno, projeto, licenciamento, fiscalização, direção de obra, encargos financeiros do construtor e a sua margem para cobrir o risco e remuneração. Mesmo que, em absurdo, se estes itens até fossem grátis, oferecidos por algum benemérito (que não existe) não seria possível satisfazer o requisito para a compra.
Assim, com o modelo tradicional corrente não é possível ter habitação acessível.
A sociedade (e economia) irá ser cada vez mais prejudicada, por exemplo com a contínua emigração de jovens (sobretudo quadros) ou com uma população trabalhadora, cansada pelas muitas horas diárias na deslocação trabalho-casa. Assim, não pode esperar-se que a nossa economia melhore a produtividade.
De alguma forma o mercado precisa de fornecer habitação a preços de venda na ordem de 1.500 €/m² de área bruta ou com rendas mensais de 7 €/m² de área bruta.
Impossível? Talvez não!
Mas, a solução pode estar no âmbito da produção do edificado?
Claro que sim. O setor de produção (AEC) poderá ser um grande contribuinte para o efeito. Existem pioneiros, mesmo em mercados conservadores como o português. Um bom exemplo, é o empreendimento “The First” desenvolvido pela construtora Casais.
A abordagem deve passar por redefinir todo um processo de produção.
Um sinal é dado pela comparação dos produtos padrão do início do século XX e do início deste século. O primeiro foi o famoso “Ford T”, digamos a visão tradicional, cujo valor imputava 90% à matéria (prima) e 10% a intangíveis (a engenharia do processo). O segundo é o IPhone (ou o smartphone) ao qual se atribui 10% à parte material e 90% a intangíveis (tecnologia, design, marketing, gestão de processo, gestão logística).
Este último modelo de negócio diferencia-se pela incorporação de inteligência, tal como no caso do edifício “The First” acima mencionado. As atividades seguem uma sequência em que o valor criado provém mais de intangíveis do que da tangibilidade dos materiais, já em si altamente transformados.
O principal responsável pela inovação do processo tem de ser o promotor imobiliário e não o construtor. O promotor aplica agora funções com inteligência e logo na fase inicial de criação do conceito como gestão de projeto e gestão de processos (são tipos de gestão distintos), o planeamento do empreendimento (business plan), o apuramento do conceito.
A abordagem encaminha diretamente para soluções construtivas racionalizadas, industrializadas, modulares, “offsite” com elevada escala e repetição de componentes mais padronizadas. A gestão aplica princípios como o DEVOPS e o LEAN e metodologias de base digital como o “Integrated Project Delivery” (IPD) e o “Building Information Modelling” (BIM).
Interessa antecipar receitas, mitigar riscos, minimizar o tempo em que se consome mais capital, acelerar o processo produtivo, mesmo que requeira mais tempo para o planeamento, preparação, negociação e contratação.
No próximo artigo devolve-se o tema da importância do ambiente humano para a criação de valor do produto imobiliário.
Lisboa, 06 de Dezembro de 2024
João Correia Gomes (Ph.D., REV, Mestre em construção, Engenheiro civil)
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