“Qualquer estudo que vise elucidar a complexidade dos fluxos materiais das sociedades modernas, os seus pré-requisitos e consequências, deve ser o mais abrangente possível, de facto, a sua cobertura deve ser verdadeiramente abrangente.”
(in Making Modern World – Materials and Dematerialization, Vaclav Smil, 2014)
Porque o humano é com toda a evidência tangível, nem a desmaterialização nem a descarbonização da economia podem desligar-se dos materiais que o servem. Os materiais são parte da equação de um processo produtivo eficiente, saudável, sustentável. A inovação é prioritária e a humanidade é compelida a encontrar soluções criativas e engenhosas para resolver um dilema entre sobrevivência ou extinção. No imobiliário são os materiais que definem espaços físicos e conformam os ambientes a prover. Na era em que a competitividade é agressiva e global, as sociedades mais prósperas são as que privilegiam a inteligência em relação ao empirismo e tradição nos processos económicos, excluindo as tecnologias mais antiquadas e ineficientes. Portanto, requer-se a simbiose entre a matéria-prima extraída do planeta e a inteligência para inovar os materiais. Procura-se que sejam sustentáveis e compatíveis com elevado valor e baixo custo de produção e de ciclo de vida. A Engenharia é chave no processo.
A Inteligência?!
O recurso mais válido para criar valor não é a matéria. É a inteligência. Esta amplifica-se em sistemas em rede como é o cérebro humano[1]. O próprio corpo humano é constituído pelos materiais mais banais na natureza que configuram um sistema de alto valor. Tal prova que, a partir dos materiais mais acessíveis e regeneráveis na natureza, é possível construir máquinas muito complexas e autónomas, logo muito sofisticadas. Aliás, um humano, ou um smartphone, é cada vez mais um nódulo de uma extensa rede neuronal que compõe o enorme cérebro que é a sociedade humana (a inteligência na escala planetária).
A sociedade em embrião tende a ser um complexo sistema de redes, não apenas baseada na atual Internet, a qual está a ser copiada para outras redes similares como a Internet da Energia (renovável), da Logística e da Mobilidade (Rifkin, 2019) que se ligam e interagem num sistema nervoso, mas corpóreo, através da Internet das coisas.
“It’s the Infrastructure, Stupid!” (Rifkin, 2019)
Todas as revoluções industriais exigem infraestruturas adaptadas às novas necessidades. As sociedades em progresso terão de investir ou retrocederão. Mas, tais infraestruturas não são as estradas ou as obras próprias da segunda revolução industrial (2RI). O automóvel e o avião que dependem de combustíveis fósseis pertencem à 2RI. A sociedade que continuar a apostar em obras de tal natureza garantir a estagnação a acrescentar divida sem resultados eficazes.
As infraestruturas que suportarão a economia do século XXI serão mais complexas do que as correntes hoje em dia. Terão de integrar sistemas para alimentar com energia elétrica e informação os dispositivos interligados, desde unidades imóveis prosumidoras de energia renovável, hyperloop entre cidades, automóveis autónomos, comboios de alta velocidade. A Internet das Coisas ligará humanos e coisas. Não se omite o investimento para reabilitar, modernizar e adaptar com novas redes, todas as infraestruturas clássicas existentes como as estradas, portos, aeroportos, redes sanitárias e de cidades. E estas serão os principais polos da convergência humana, ou a forma mais eficiente no consumo de energia e interação humana que estimula a criatividade produtiva.
Emerge aqui um enorme dilema. Por um lado, terá de investir-se em grandes obras de engenharia, mas por outro lado terá de se limitar a emissão de CO2. Ora, os materiais de referência para estas obras são o cimento e o aço, grandes contribuintes em carbono.
Contribuição para os gases de estufa das principais atividades económicas (Gates, 2021):
Produção de Materiais (cimento, aço, plástico) 31%
Produção de Energia (elétrica) 27%
Produção Agropecuária (plantas, animais) 19%
Transporte de pessoas e bens (aviões, camiões, embarcações) 16%
Aquecimento e Refrigeração (ar condicionado e outros) 7%
Será difícil substituir num ápice o cimento Portland ou os produtos de siderurgia, grandes consumidores de energia e emissores de CO2. Tal exigiria uma mudança radical nos processos de construção e de modelos de cálculo que criam grandes obras de engenharia. Mas, o seu uso deveria ser mais reservado até se substituir com outras soluções. Por exemplo, o betão, sobretudo armado, é de longe o material mais produzido e aplicado pelo Homem, cerca de 500 Gt entre 1945 e 2010, sendo 60 Gt de cimento (Smil, 2014). Na sua produção emite-se imenso CO2 (1 Kg/t) e, na maior parte dos países do mundo tal processo é descontrolado, embora existam filtros que capturam já 99,6%. Parte da solução estará em investir em sistemas produtivos mais eficientes quanto a emissões. Outra parte estará em alternativas talvez mais naturais e inteligentes. Por exemplo, o betão pozolânico dos romanos cuja durabilidade se verifica em tantos monumentos, algo difícil para o betão atual. Tomando como exemplo, poderia orientar-se para soluções de cimentos verdes, como o MOC (magnesium oxychloride cement).
Quanto ao aço, a orientação seria para a escolha de materiais cujo fabrico dependa menos da intensiva aplicação do carbono e dos altos fornos, mas com menor temperatura como o LSF (Light Steel Frame). Poderá pensar em outros compósitos (Neto, 2016) além do betão armado. Podem encontrar-se soluções não apenas dependentes da função resistente do aço, mas, por exemplo, o grafeno.
Além das grandes infraestruturas, o maior peso da economia ainda estará nos edifícios, desde a pequena moradia ao grande imóvel multipisos. Na economia regenerativa e da eficiência energética e ambiental, a prática inteligente seria limitar a demolição do edificado existente para construir novo. Esta opção tende a ser típica de economias menos eficientes ou que se focam na ostentação e aparência de ricas. As economias efetivamente prósperas (não é Portugal) tendem a privilegiar a preservação do edificado, reabilitando-o, quando modernizam as suas cidades. Assim preservam a energia interna das suas estruturas, contida na coesão dos materiais dos edifícios, mas que a demolição anularia.
O Norte da Europa aproveita os fundos europeus para melhorar a capacidade energética das suas cidades (produção, armazenamento e distribuição). Essa atitude diferencia entre as economias que aproveitam e regeneram e as que desperdiçam. É provável que aumente o hiato entre as sociedades mais prósperas e as que estagnam porque não racionalizam processos, apenas mantêm tradições sem outros horizontes.
A engenharia moderna deveria empenhar-se em otimizar os processos produtivos, como os de construção, ainda muito artesanais, com baixa produtividade e elevado desperdício, dependentes de mão de obra intensiva com baixa formação e fraco rendimento. Esta pode ser simbolizada pela figura do assentamento do tijolo e argamassa pelo pedreiro servido pelo servente com um carrinho de mão. A figura pouco difere dos relevos do antigo Egipto de há 5.000 anos ou de miseráveis (quase escravos) que ainda fazem tijolos ao sol na maioria dos países. Esta prática resulta em Portugal na construção cara e lenta, contribuindo para a baixa produtividade. O imobiliário e construção continuarão a ser essenciais para a economia que depende dos ambientes para criar riqueza, mas que não pode ser medida pela quantidade de cimento e de aço consumidos que o PIB mede.
A engenharia deve então procurar soluções viáveis e diversas que integrem o máximo de requisitos funcionais (resistência, térmica, acústica, comunicação, preservação ambiental), baixo custo de produção e do ciclo de vida. O foco deve iniciar no processo de produção que deve ser racionalizado, combinando matéria prima (mínima) e energia (renovável).
A inteligência está presente na investigação sobre novos materiais e seguir para a conceção e projeto. A investigação deve incidir na engenharia de materiais e da biotecnologia. No primeiro caso, aponta-se como exemplo as inovações disruptivas e baixo consumo material da cientista Elvira Fortunato, como é o transístor de papel. Outra pista potencial estará na biotecnologia já que a natureza já disponibiliza os materiais que se regeneram e aproveitam os nutrientes locais, usam abundante energia solar e absorvem o caro carbono da biosfera para assim criar matérias funcionais como madeira, cortiça, fungos ou até palha!
As soluções materiais deverão procurar ligar as várias especialidades de engenharia – civil, química, biotecnologia. Por exemplo, as paredes poderão adquirir volume por absorção de energia (solar) e humidade, satisfazer vários requisitos funcionais em simultâneo, como resistência, isolamento térmico e acústico, inércia térmica, permeabilidade, estanquicidade. Devem ser fáceis de trabalhar e aplicar na obra, como se fossem peças de mobiliário IKEA.
Tal abordagem requer mais empenho nos processos racionais de conceção e de produção, os quais podem ser revertidos em linguagem codificada (Gomes, 2018) do que nas práticas empíricas ancestrais ainda muito incutidas no nosso modelo produtivo da construção. O fazer físico é relegado para o final do processo produtivo pela máquina e mão de obra que recebem as instruções em bits.
Neste campo de interconexão inteligência-máquina, o BIM é uma metodologia prometedora. Todo o processo de produção estaria a montante do estaleiro (offsite construction) através de conceitos como os modelos modulares, obviamente prefabricados e normalizados, muito abertos que permitam integrar várias soluções de arquitetura, de expansão e de ligação a outros sistemas construtivos abertos.
Lisboa, 28 de abril de 2021
João Correia Gomes
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[1] Tema na minha tese de doutoramento em 2004 na Universidade de Salford, Reino Unido.
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